domingo, 13 de setembro de 2009

Leitura de Imagens

Dentre os diversos assuntos abordados na disciplina de Estética e História das Artes, sem sombra de dúvidas o que se sobressai é a técnica de leitura de imagens. Nesta, é possível fazer uma análise detalhada de obras identificando técnicas, disposição e composição de elementos, simbologia, características do período e captura da essência do artista.

Para melhor entendimento, escolhi um dos quadros mais famosos de Sandro Botticelli, O Nascimento de Vênus pintado em 1483, devido a sua riqueza em detalhes e inúmeros significados ocultos pelas cores e pinceladas que nos dão como produto essa belíssima obra.


A obra foi estruturada de modo que a figura principal (Vênus) ficasse centralizada e os demais elementos da composição foram distribuídos de forma equilibrada e harmoniosa conforme os princípios da arte renascentista dando a impressão de estarem ligados uns aos outros. A pintura de Botticelli acentua o contorno dos corpos com espaços delimitados, o que dá movimento e realismo.

A cena retratada na pintura mostra Vênus, que nasce de uma enorme concha, sendo conduzida pelos ventos – os Zéfiros –, aqui representados por dois amantes. A deusa tem a seu lado direito, vinda do continente, a deusa Flora, trazendo um manto florido para cobrir a sua nudez. Os ventos sopram rosas que perfumam todo o mar.

Esta passagem parece ser uma alusão ao poema de Homero (Swinglehurst, 1996:45), no qual Zéfiro sopra Vênus, logo após o seu nascimento, até a ilha de Chipre, onde ela é recebida por Flora, que a veste e a perfuma para que seja conduzida ao monte Olimpo, e tome o seu lugar junto aos deuses imortais. A cena remete ainda ao famoso quadro de Apeles (séc. IV a. C.), o grande pintor grego, que representa Afrodite com o epíteto de Anadiômene, "a que surge" das ondas do mar (Brandão, 1994:216).

Com relação ao nascimento da deusa, duas versões podem ser destacadas. A primeira, mais antiga, mencionada em Apeles, é aquela presente no relato de criação de Hesíodo, a Teogonia. Nesta versão, Vênus/Afrodite nasce das espumas do mar, que são, na verdade, a mistura do sêmen e do sangue derramados de Úrano (o Céu), castrado por seu filho Cronos/Saturno numa disputa de poder. Em uma outra versão, encontrada na Ilíada, a deusa do amor nasce da união de Zeus e Dione.

É curioso notar que o aspecto mais terrível do mito fica fora desta composição: não há referências explícitas no quadro ao mito teogônico da castração. Em Botticelli, Vênus nasce de uma enorme concha, cujo simbolismo pode evocar as qualidades fecundantes, criadoras da água. Segundo Wind (1968), a postura da deusa sintetiza, ainda, a natureza dual do amor, ao mesmo tempo sensual e casto. Interpretada à luz do neoplatonismo, Vênus representaria a união de qualidades espirituais e instintivas, a transcendental "união de contrários" (ibid.). É o que Lopera et alii (1995:122) apontam como a fusão do reino da Venus Humanitas com a luz da Venus Coelestis, a luz divina.

Os personagens que a acompanham só vêm corroborar esta visão. Do lado esquerdo, estão os amantes Zéfiros, que exalam o sopro, o espírito da paixão – materializado nas rosas –, através do qual a deusa recém-nascida é movida e inspirada. O enlace dos dois amantes representa uma sensibilidade inflamada de paixão, influenciada pela versificação filosófica do De Rerum Natura, de Lucrécio. Nela, o poeta romano descreve um amor sensual e corporal, correspondente ao da imagem projetada em O Nascimento de Vênus.

"(...) Abriu-se a custo o olhar primaveril do dia, e que desenfreado reina o vento Zéfiro (...) o coração cheio dos temas violências (...) prisioneiro de teu encanto (...) a todos lanças no coração o amor de doces arrepios, e fazes com que, cheios de amor pela sua espécie, multipliquem as raças..." (Lucrécio, 1962: v. 9-18).

Tal sensualidade contrasta com a postura pudica de Vênus, completamente despida de senso erótico. Vênus representa o amor incorpóreo, o qual Botticelli fez questão de privilegiar, ao representá-la em primeiro plano, enquanto os amantes zéfiros subordinam-se às condições de segundo plano.


Do lado direito, vemos Flora representando a castidade, pronta a cobrir a nudez/sexualidade da deusa. Seu vestido, assim como o manto que carrega – ambos cobertos de flores –, podem ser ainda uma alusão à primavera, estação onde os poderes sensuais de Vênus estão no auge.

"(...)A Primavera e Vênus chegaram: à frente delas Flora, a mãe, recobre todo o caminho e enche-o de perfumes requintados (...) Divino, perante ti fogem os ventos e as nuvens do céu, perante ti e a tua chegada. Para ti a Terra, artista feminina, envia flores perfumadas, a superfícies dos mares dirigi-te um claro sorriso, e o céu cobre-te suavemente com os luminosos raios." (In: Deimling, 1995:43).

Todo o lirismo e poesia presentes na obra de Botticelli – "que se concentra menos na ação e mais no sentimento, através da adoção de uma atitude contemplativa" (ibid.:121) – fazem, em última análise, uma apologia da beleza que a figura de Vênus encarna. É a beleza que toma forma na água informe, fluxo contínuo, gerador de todas as coisas. "O Nascimento de Vênus" é uma alegoria, pela qual a mensagem divina desta beleza tão festejada chega ao mundo, através da síntese amorosa promovida pela já mencionada união dos contrários. Vênus é o poder que imprime a ordem transcendente nas coisas visíveis, traduzindo nas formas o spiritus perfumado e florido do divino:

"(...) Sob o seu símbolo, reina no ser humano a alegria de viver, na festa primaveril de embriaguez dos sentidos e no mais refinado e espiritualizado prazer da estética. Seu reino é o da ternura e das carícias, do desejo amoroso e da fusão sensual, da admiração feliz, da doçura, da bondade, do prazer e da beleza. É o reino daquela paz de coração que chamamos felicidade." ( Chevalier e Gheerbrant, 1996:938.)



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